quarta-feira, 26 de março de 2014

Acidente e Vida Nova

Após acidente, passos rumo a uma vida nova
Ademar Guss perdeu a perna e daí conheceu sua profissão

JORNAL A GAZETA - ES - 19/05/2013
Por Frederico Goulart

O enredo da vida de Ademar Guss mudou depois de um grave acontecimento. Mas, contrariando a lógica, a mudança não foi para pior. Ele esculpiu em madeira o que o ajudou a se reinventar, mudar de vida e passar a ter novas perspectivas. Ganhou um mestre, de ofício e para a vida, e passou a irradiar sua superação. E se o fato de acreditar sempre foi seu superpoder, hoje, aos 62 anos, ele prova que sua história daria um filme digno dos heróis das telonas.

Foto: Vitor Jubini - GZ
A perna que Ademar utiliza hoje é bem colorida

"Venho de uma família muito humilde e desde os 9 anos trabalho para ajudá-la. Sou o mais velho de nove irmãos. Aos 14, quebrava pedra numa pedreira de Cariacica. Estudava pela manhã e à tarde ia para lá com meu martelo. Recebia por lata que fazia, por isso trabalhava o quanto dava.

Já estava ali havia quatro anos quando tudo aconteceu. Um bloco de cerca de uma tonelada despencou sobre minha perna esquerda, do joelho para baixo. Na hora, o impacto parece que adormece o local. Eu não senti nada.

O desespero veio depois, quando vi que estava tudo quebrado. Minha perna ficou pendurada por um pedacinho de pele. Naquele momento, já sabia que não daria para recuperá-la. Juntou todo mundo, colocaram um pano e me levaram para o hospital.

Tentaram refazer a perna, mas não deu em nada. O jeito foi a amputação. Quando acordei é que fui saber o que era dor. Foram 15 dias de terríveis. Já se passaram 49 anos, e me lembro bem. Na minha família, foi aquele desespero. Ninguém tinha condições de bancar nada, e muita gente dependia de mim.

Após algum tempo, mesmo de muletas, voltei ao trabalho. Era a única coisa que sabia fazer e fiquei com medo de não arrumar mais nada. Depois, consegui uma vaga de trocador de ônibus. Mas era muito difícil me locomover de muletas. Cansei delas e decidi fazer, por conta própria, minha perna nova. Peguei um pedaço de pau, amarrei, furei, encaixei e usei.

Ela ficou comigo mais de um ano. Foi uma independência. Passei a me virar sozinho. Dançava, ia para as serestas, fiz tudo o que tinha que fazer. Também ganhei vários apelidos. ‘Dois de paus’ era o melhorzinho.

Só abandonei essa perna ao receber uma prótese da Legião Brasileira de Assistência (LBA), um órgão do governo federal. Como aqui não havia nenhuma tecnologia, precisei ir ao Rio de Janeiro para realizar os procedimentos.

Lá, conheci um senhor de mais de 80 anos. Era um russo, protesista. E praticamente me adotou. Além de fazer minha nova perna, decidiu me ensinar tudo o que sabia. E não era pouco. Ele era um mestre. Tinha diploma em cinco países.

Meu pai não queria me deixar morar lá, com medo da cidade grande. Temia que me envolvesse com outras coisas. Como precisava fazer um longo acompanhamento, o custo iria ficar alto. Ele, então, cedeu.

Ganhei uma prótese de alumínio batido que pesava quatro quilos, era a melhor tecnologia do momento. E eu me apaixonei por aquilo tudo. O russo passou a me pagar um salário mínimo para eu aprender. Fiquei por dois anos. Ele me arrumou estágios no Rio de Janeiro e em Salvador. Em 1972, um dos nossos fornecedores quis abrir uma fabricação em Vitória, e vim para cá. Oito anos depois, decidi montar meu negócio. Nesse intervalo, me casei e tive três filhos.


Foto: Vitor Jubini - GZ
Em seu laboratório, o protesista atende muitas crianças

Não tinha recurso nenhum. Peguei um financiamento, que nem sabia se conseguiria pagar, e aluguei uma garagem. Foi assim que comecei. Hoje, tenho um laboratório e uma oficina de ponta na minha clínica. Minha casa fica lá mesmo, e nela vivo com uma nova companheira, que conheci há quatro anos.

Já fiz mais de 40 cursos na área. Em um mês, produzimos cinco novas próteses e atendemos a 50 pessoas. Também fazemos um grande trabalho social. A maioria das empresas só dá a prótese, mas eu só a entrego após realizar todo um trabalho de adaptação. Não é da noite para o dia que se reaprende a andar.

Atendo a muitas crianças da Apae, que vêm do interior. Elas chegam às 6h e só pegam o carro de volta às 16h. Normalmente, vem toda a família, e meu atendimento dura uma hora. Por isso, decidi construir um apartamento sobre a minha casa. Lá, eles passaram a ser atendidos por profissionais que fazem todo o acompanhamento necessário. Tenho cliente que vem de Rondônia, do Maranhão, Mato Grosso do Sul, São Paulo. Eles passam dias aqui, gratuitamente.

Isso eu acho que absorvi do meu mestre russo. Não tenho cliente, tenho parceiros. Já juntei mais de 5 mil cartões de Natal, me desejando o que há de melhor.

Também fazemos doações, como no caso do garoto Daniel, de Santo Antônio, Vitória, que teve a perna decepada por uma lancha. Sempre falo que tenho que sair de perto para não ter prejuízo, mas não tem jeito. As próteses custam cerca de R$ 8 mil. Sobre a minha, já desencanei. Uso modelo colorido, pois gosto de caminhar de bermuda.

Ajudo minha família também. Tenho orgulho do orgulho que eles têm por mim. O trauma psicológico é o pior. O físico depois você se adapta à sua maneira. Só a família pode lhe ajudar.

Sei que ainda existe muito preconceito, sofri com isso. Mas minha intenção de superar fez eu tirar tudo de letra. Quando me falavam que não podia fazer, ia lá e fazia. Hoje não tenho nenhuma mágoa, nenhuma frustração. Só carrego o desejo de viver muito para ajudar as pessoas.”